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Experiências de uma dekaseki

Em junho de 1997, foi a primeira vez que vim ao Japão, eu estava com 22 anos e fui trabalhar em bentoya, eu ficava na esteira. Meu salário era 1000 ienes por hora, minha folga era toda-terça feira e o horário pra entrar era 8:30 da manhã, não tinha horário pra sair, quem quisesse podia fazer o tanto de horas extras que aguentasse.
Geralmente eu fazia em torno de 4 ~6 horas extras por dia e na minha saideira eu virava a noite, tipo, eu entrava às 8:30 da segunda-feira e só voltava pro apato lá pelo meio dia da terça-feira, daí começava a semana de novo na quarta-feira pela manhã às 8:30, me lembro que eu pegava a bicicleta pra ir pro trabalho, estava um dia ensolarado mas estava friozinho, dava uns 20 minutos de bike mais ou menos até a fábrica, quando eu saía no dia seguinte parecia que era o mesmo dia ensolarado (risos), eu ficava tanto tempo em pé com aquelas botas de açogueiro que a sola do meu pé até trocou de pele por causa das bolhas, sério! Sem exagero gente.
O salário era baixo, mas eu me lembro que ao receber meu primeiro salário eu vi que daria pra pagar as passagem em menos tempo, então, conversei com a empreiteira e disse que queria que os custos da passagem fossem descontados em 3 vezes e não em 6 vezes, eu estava bem animada e confiante que no tempo de um ano eu conseguiria voltar ao Brasil e teria minha tão sonhada casinha pra morar, estava tudo muito tranquilo até chegar uma menina do Brasil pra dividir o apato comigo, por ser inexperiente e primeira vez de Japão, eu passei uns momentos bem angustiantes com essa pessoa, ela tinha 27 anos e era a sétima vez dela no Japão, era nervosa, parecia cheia de ódio e sempre estava de mau humor, as vezes eu acordava assustada com ela batendo as portas dos armários, xingando alto e falando palavrões, parecia que estava até com abstinência de algum tóxico, cruz crédo!
Pior que chegou uma hora que eu nem conseguia mais dormir direito, como era só um quarto pra nós duas, o clima era bem tenso, sem contar que ela meteu o louco em mim, dizia que o Japão não era igual Brasil, que era uma indecência eu usar mini blusa e shorts, que era uma vergonha andar com os braços de fora, que não podia fazer rodinhas de conversa na frente do apato senão chamariam a polícia, etc e tals sendo que ela que ficava na frente do apato dando risadas altas e conversando.
Chegou o mês de agosto, um calor insuportável e eu com medo de usar minhas roupas, não conversava com ninguém, minha vida era ir pra fábrica e voltar pro apato pra tomar banho e dormir porque as vezes nem fome pra comer eu tinha. A situação foi ficando cada dia pior, um dia ao voltar do trabalho eu a vi juntamente com outras pessoas conversando e rindo, estavam sentados numa mureta que tinha bem na entrada do apato, um dos rapazes que estavam ali cumprimentou e convidou me para que eu me juntasse ao grupo, mas eu só agradeci e disse que talvez um outro dia, continuei caminhando e ouvi ela dizendo "deixa ela pra lá, essa menina é estranha e é melhor nem insistir porque é perturbada da cabeça" QUE MENINA LOUCA! AFF
Quando entrou no mês de setembro foi a gota d´água porque ela começou me perturbar na fábrica também, onde eu passava a maior parte do meu tempo, sabe quando a pessoa passa com tudo do seu lado de propósito com um carrinho só pra causar um acidente? Então, ela fazia isto comigo por várias vezes, eu tinha sempre que ficar alerta para não me deixar machucar, era um inferno! Certo dia, fazendo a limpeza dos elevadores, porque tinha que esperar o macarrão ficar pronto pra poder ir pra esteira colocar os outros alimentos no bento, então, pra não ficar sem fazer nada, quem era da esteira tinha que fazer a limpeza pesada nos elevadores e tinha que usar muitos produtos químicos corrosivos e tals, neste dia ela passou o dia todo tentando me acertar com o carrinho e eu sempre me esquivando! Estava eu lá me matando tentando tirar as cracas daquele elevador cheio de gordura, óleo, e sei lá mais o que e ela vem e pede a escova que eu estava usando, eu disse pra ela pegar a outra porque aquela eu estava usando, pensa numa pessoa que se transforma! Ela doida pegou um balde cheio de produto corrosivo que tinha que usar duas luvas pra poder manusear ele e joga em cima de mim! As pessoas que estavam ali não entenderam nada! Eu fiquei muito furiosa! Já estava de saco cheio! Falei um monte pra ela e disse que o problema dela era a falta de um pau bem grande no c#$% dela! Eu estava tão cega de raiva que fui pra cima dela na intenção de esganar ela, mas algumas pessoas me seguraram e ela que era toda valentona e cheia de si, foi embora e eu fiquei ali com aquele nó na minha garganta! Se tem tanta raiva assim de mim e vai aliviar me machucando, vamos sair na mão então ué, daí já resolve logo essa parada! Duas horas depois eu voltando pro apato, não tinha celular pra pedir ajuda, não conhecia ninguém, era recém chegada do Brasil, primeira vez de Japão, não entendia o japonês, o pessoal da empreiteira só tinha um senhor que falava e entendia mais ou menos, os demais eram todos japoneses e a comunicação era quase impossível! Eu estava enlouquecendo de saudade de casa e enlouquecendo tendo que lidar com aquele tipo de pessoa no apato e na fábrica, estava sendo muito difícil tudo aquilo!
Quando cheguei no apato ela não estava, no dia seguinte às 7 horas da manhã o japonês da empreiteira bate no apato e fala que não é pra eu ir trabalhar que eles vão me levar pra outro serviço, imagine a minha indignação e sensação de injustiça! Eu queria explicar o que houve mas não tinha como, o japonês não entendia português, na minha cabeça eu pensei, no mínimo ela já ligou pra empreiteira e como sabe falar japonês falou o que foi conveniente pra ela e agora a ruim da história sou eu.
Enfim, lá vou eu pra Kyoto trabalhar na fabrica de pizza (Tolona), tipo, pra quem ganhava 1000 ines por hora e conseguia receber líquido mais de 300 mil ienes, agora vou trabalhar numa fábrica onde farei 3 horas de extra fixa e só de dia, num tem adicional noturno, não pode virar na saideira, ferrou meu financeiro, mas é vida que segue né.

Essa foto é do trocador na fábrica de pizza em Kyoto (Tolona), pegava ônibus todos os dias para ir trabalhar, dava uns 25 minutos mais ou menos pra chegar na fábrica, fazia 3 horas extras diárias, tinha 45 minutos de almoço e 15 minutos de descanso antes das horas extras, o uniforme era todo rosa e tinha que prender bem os cabelos, usar touca, avental, bota, luvas e máscara também, igual no bentoya.
Tudo era bem mais difícil, pra ligar para o Brasil precisa comprar cartão telefônico no caminhão de produtos brasileiros que vinha uma vez por semana e ir até uma cabine telefônica onde não havia privacidade pra conversar, as vezes tinha até fila de outros brasileiros querendo ligar também, tinha que pagar mico e chorar na frente dos outros toda vez que eu ligava pro Brasil, era osso mesmo.

Em novembro eu já estava desesperada pra voltar, mas não podia porque dependia da empreiteira pra tudo e a mesma estava com o meu passaporte, o que é um crime, mas acredito que hoje em dia em 2021, dificilmente as pessoas são tão desinformadas como a gente era naquela época.
O salário era 1000 ienes/hora, não era obrigatório shakai hoken (seguro saúde/aposentadoria), eu passava o mês com 30 mil ienes mais ou menos, sempre deixava uma emergência de uns 20 mil e o restante enviava tudo pro Brasil. Sozinha, somente eu e Deus, longe da família, não entendia o japonês, não havia tsuyakos aos montes como tem hoje, não havia facilidades de se ter um celular e dar um google para traduzir, pesquisar ou seja lá o que for pra ajudar em alguma coisa, bem diferente de hoje que temos acesso aos montes para buscar informação e ajuda de todo tipo.

Bem, este era o uniforme que eu usava para trabalhar na fábrica de meias calças, era tipo um casaquinho azul por cima, calça social azul e blusa branca por baixo, os cabelos tinham que estar presos para não correr o risco de enroscar nas máquinas, não podia usar relógio, nem anéis para não desfiar os tecidos na hora de colocar na máquina, o serviço basicamente era colocar duas pernas de meia que era costurada e já saía uma meia calça prontinha do outro lado, a máquina rodava sem parar e quando dava algum problema, a própria máquina mostrava num visor onde estava o problema, era só regular e dar start novamente.

Eu morava no alojamento da fábrica, era cozinha, dois quartos, ofurô, banheiro pra necessidades fisiológicas e lavanderia, não havia brasileiros nesta fábrica, eu e mais uma menina seríamos as primeiras e a empreiteira pediu pra gente se esforçar que dependeria do nosso desempenho para que outros brasileiros viessem trabalhar ali também, tipo, a gente estava sendo meio que cobaias pra saber se brasileiros serviriam pra fazer aquele serviço.
Acho que o maior desafio daqueles tempos, era conseguir ficar longe da família que estava no Brasil, o resto era fichinha com certeza! Ali mesmo dentro dos muros da fábrica, tinha um parquinho, um telefone público daqueles verdinhos, um local de banho coletivo que inclusive eu tinha muita vergonha de tomar banho junto com as meninas, mas fui assim mesmo por insistência delas, pois estavam se esforçando para me deixar o mais à vontade possível, todas eram muito yasashii (Gentil). Tinha também uma sala de karaoke onde eu conseguia me distrair um pouco e não focar tanto na saudade que eu sentia da minha família que estava no Brasil.

Em abril de 1998, entrou mais duas brasileiras, só que uma delas era casada e ela vinha de bicicleta até a fábrica, não morava no alojamento, já a outra, ficou junto comigo e a outra brasileira, a gente trabalhava de segunda à sábado e folgava aos domingos, então, sempre íamos juntas ao mercado e na folga a gente ficava conversando, graças a Deus nos demos super bem e não tivemos problema algum em dividir o apato.
Chegou maio e a empreiteira nada de trazer meu passaporte ou falar sobre o assunto do meu retorno ao Brasil, na verdade eu nem tinha contato com a empreiteira como se tem hoje em dia que até escritório dentro das fábricas elas têm, eu estava cada dia mais triste e minha tristeza por estar longe da família era visível e, como já tinha feito amizade com as meninas e com os chefes, já tinha aprendido algumas palavras em japonês, já conseguia me comunicar um pouco, acabei desabafando com o kakaricho que chamou o bucho e do meu jeito usando gestos, fotografias e tals, falando aquele japonês bem ruim eu expliquei minha situação e chorando muito disse que queria retornar ao Brasil, eles prometeram que iriam me ajudar, disseram pra eu ficar calma que iriam conversar com a empreiteira e eu voltaria pra casa, mesmo sem conseguir me comunicar 100%, eu me senti segura e acolhida por todos desta fábrica, as meninas de Okinawa, os japa que arrumavam as máquinas, kacho, kakaricho e bucho sempre muito yasashii (gentil). Depois desse dia, parece que toda a fábrica sabia da minha situação, até as meninas que serviam no refeitório vinham conversar comigo e dizer palavras de incentivo, pra eu aguentar mais um pouquinho e me esforçar no trabalho que tudo ficaria bem. Na mesma semana, o senhor da empreiteira que entendia português, apareceu dizendo que não trouxe o passaporte porque estavam renovando o meu visto, mas que assim que saísse o visto eles trariam e já iriam providenciar minha viagem de volta, eu concordei e me comprometi em trabalhar direitinho até meu visto ficar pronto.
Neste meio tempo, o kakaricho e o bucho levou a gente pra pescar, me lembro que as vezes eu as meninas conversávamos e quando a gente ria, eles ficavam bravos e pediam pra gente fazer silêncio que a gente estava espantando os peixes (risos).
Finalmente a empreiteira veio com a boa notícia que meu embarque já estava confirmado pra junho! Minha produção até aumentou de tanta felicidade em voltar pra casa! Como eu trabalharia só mais uma semana, combinaram um jantar e depois fomos no karaoke, como eu ainda não conseguia me comunicar 100%, na hora de fazer meu pedido eu apontava para os pratos do cardápio mas não tinha decidido ainda qual eu ia querer, era só pra dizer que eu estava com dúvida entre esse, aquele, este outro aqui e ia apontando, quando eu fui perceber era só prato que chegava que nem cabia mais na mesa, meu Deus! As meninas começaram um alvoroço e ninguém sabia quem tinha pedido tudo aquilo, daí o kakaricho falou que era os que eu tinha escolhido! Bem dizer pediram todos os pratos do restaurante, fiquei passada e me senti muito mal com tanto desperdício, coisas inusitadas como essa acontecem quando a comunicação não é entendida.
Acabou que voltamos pro apato e teve prato que nem foi tocado, espero que o restaurante tenha reaproveitado de alguma forma e que Deus me perdoe por essa culpa, não foi minha intenção.

Enfim, chegou o dia de retornar ao Brasil, isto foi em meados de julho de 1998.
No trajeto até o aeroporto, o senhor da empreiteira comentou sobre a garota que dividia o apato comigo, falou que a mesma causou um monte de confusão e sem entrar em detalhes, apenas disse que ela foi deportada, não vou negar que senti uma certa satisfação com essa notícia e mais forte que isto, foi o sentimento de justiça seja feita que eu senti ao saber do rumo que levou toda a história, apesar da minha consciência não me acusar de nada, no fundo, no fundo foi ruim terem me trocado de emprego e eu ter saído como se fosse a causadora de todos os problemas.
De qualquer forma, valeu a experiência, com certeza serviu pra me deixar mais forte e o que importava mesmo naquele momento era que eu estava voltando pra casa.

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Márcia Taketa

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